Publicamos hoje o texto de referência do colóquio DESBUNDADOS E PORRALOUCAS. A CONTRACULTURA REVISITADA, que terá lugar na sala do IEB-FLUC nos próximos dias 19 e 20 de maio.
A Contracultura Revisitada
Numa das suas várias tentativas de concetualização do fenómeno da contracultura, o brasileiro Luiz Carlos Maciel analisa a sua “evolução interna” nos termos de uma passagem do hedonismo à politização e, por fim, ao misticismo profético, o que mostra bem a dificuldade de descrição de um fenómeno que, na sua diversidade, pôs o acento tónico mais na investigação subjetiva e nas mudanças globais de costumes (culturas do corpo e do sexo, demandas identitárias e multiculturais, direitos civis e de minorias, consumo de drogas, etc.) do que na crítica da sociedade de classes e da estrutura de poder. O pano de fundo histórico deste processo é, de resto, conhecido: anos 60, reação ao consenso da sociedade do consumo do pós-guerra, produção de alternativas comunitárias, desencanto político com as referências dos dois blocos da Guerra Fria, a revolta que explode em maio de 68. No Brasil, a década de desenvolvimentismo, cujo ícone maior será Brasília, dissocia-se progressivamente da ideia de democracia a partir de 1964, enquanto na Península Ibérica as ditaduras se prolongam sem fim à vista, no caso português com a guerra colonial em África que condena toda uma geração.
Estudar a contracultura na literatura e nas artes no Brasil, nos EUA, em Portugal ou Espanha nos anos 60 e 70 é, pois, estudar um continente submerso, para não dizer recalcado pela narrativa canónica – de modo muito pertinente, Mark Lilla notou que todos reconhecemos “um antes e um depois [dos anos 60] mas ainda buscamos o sentido do que aconteceu nesse intervalo”. Por um lado, os objetos a estudar tendem a não ser inteiramente reconhecíveis, enquanto textos ou enquanto obras, já que põem em causa a noção de texto e género, bem como a de todo orgânico. Por outro lado, as práticas expressivas de que essas obras resultam tendem a questionar o perfeito continuum entre arte e sociedade, criando descontinuidades e hiatos, que solicitam um aturado trabalho de reconstrução explicativa. Finalmente, e na medida em que foram produzidas e recebidas em contextos políticos ditatoriais ou de difícil transição para a democracia, estas obras exprimem atitudes políticas heterodoxas (o “desbunde”, emblemático do caso brasileiro), historicamente condenadas a ser mal lidas, mesmo do lado dos que resistiam à ditadura. Trata-se, pois, de trazer à luz um corpus e um conjunto de práticas – expressivas, performativas, interartísticas – com um grande potencial libertador em relação à noção de literatura e arte hoje dominante, mostrando que o fenómeno literário e artístico é mais vário, mais rico e mais perturbador do que a doxa atual sugere. Um outro aspeto relevante do tema é o de mostrar que uma mesma atitude contracultural pode solicitar, em diferentes contextos, respostas também diferentes, do plano artístico ao latamente político. Por fim, convém interrogar de que modo a contracultura diz ainda hoje alguma coisa (ou não) ao mundo da arte digital, da cibercultura e ciberativismo, que carrega de novo consigo os fantasmas da total integração, mas também do apocalipse ao virar da esquina.
O colóquio que terá lugar no Instituto de Estudos Brasileiros nos dias 19 e 20 de maio de 2022 visará, pois, discutir alguns aspetos da eclosão contracultural dos anos 60 e 70 do século passado, lendo nela quer a sua historicidade própria, quer o rastro longo de que ela se alimenta no passado bem como o que deixou para depois.
Comissão organizadora
Osvaldo Manuel Silvestre (Universidade de Coimbra)
Alberto Sismondini (Universidade de Coimbra)
Carla Pinto (Estudante de 1º Ciclo em Português)
Elizama Almeida de Oliveira (Estudante de Doutoramento, Materialidades da Literatura)
Keissy Carvelli (Estudante de Doutoramento, UNESP-Assis e Universidade de Coimbra)
Márcia Gonçalves (Estudante de 1º Ciclo em Português)
Thales Estefani (Estudante de Doutoramento, Materialidades da Literatura)
Comissão Científica
Alcir Pécora (UNICAMP)
Alva Teixeiro (Universidade de Lisboa)
Germán Labrador Méndez (Universidade de Princeton)
Manuel Portela (Universidade de Coimbra)
Marcelo Moreschi (UNIFESP)
Pedro Serra (Universidade de Salamanca)
Apoios: Instituto de Estudos Brasileiros, Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, Centro de Literatura Portuguesa, FLUC.